Figuras

Leon Kossovitch

Cabral, nesta mostra, demite a figura-personagem – intimismo, expressionismo: romantismos – e, licenciando cânones, não a sufraga com significado iconográfico, nem a ergue com fábrica compositiva. Ora agigantada ora secundarizada, a figura distancia retórica de empatia que, impingindo sinestesia a espectadores, espreme a pintura, ou a de composicionismo que, articulando inteligência de vedores, maquina aplicações hipertrofiadoras de processos pictóricos. A multiplicidade, excessiva, de dimensões e sentidos da figura aliena humanismos, isto é, sistema hierárquico, tal centro, que a substancialize, erigindo-a sujeito de predicados nela concorrentes, ou a encene, capturando-a em rede que a transfigura em caráter de teatro, que nela se dilata como representação imperial. Pulverizando a substancialidade do sujeito inclusivo, mesmo quando dilacerado ou irônico – expressionismo – ou pleno, até mesmo filistino – intimismo – e barrando a cenografia que captura a diferença com a identidade de representação, – naturalismo, canônicas, realismo, outras tantas canônicas –, a figura afirma-se singular como evento de pintura. Indiferente a substância e cenário, a humanismo e cânone, a imagem cabraliana é composição instável, proliferação de relações soltas enquanto articuladas, operada por intersecções nômades que podem valorizar elemento correlato e tal objeto, este nu. Quando sobressai, a figura evidencia-se na intersecção de relações pictóricas tensivas, as mais das vezes divergentes, passível, contudo, de ser diferida, referencialmente, por outra coisa, por trechos seus, pelo espaço, pelo nada. Campo de passagens, ainda referencialmente, a imagem engata coisas, pedaços ou nadas das mesmas coisas, formando-se, assim, zonas pictóricas supra-objetais a serem vistas como superfícies ora abertas, quando se ilimitam, ora fechadas, quando se configuram como cascas, áreas vibráteis cujos bordos tendem a não coincidir com os contornos dos objetos figurados, nas quais o olhar segue, pára, salta e segue. Neutralizadas as convergências predicativas – cor própria, valores táteis, volume contornado – e as retórico-compositivas – perspectiva como cena vigilante de substâncias dispostas em espaço homogêneo, a que se remetem cores e dimensões – a experimentação cabraliana alheia separações: nem a figura vem teatralizada por espaço independente dela nem o espaço, imaginado autônomo, é incluído entre outros predicados na figura. Dispensada a partição do gênero continente/conteúdo, o trabalho investiga a figura ambientada.

Emendado, o pincel de metro distancia o suporte, trazendo para a visibilidade desimpedida objeto e imagem. Enquanto o olhar os esquadrinha, o gesto apressa-se, sincronia da percepção detida e da execução larga. A percepção analítica e o gesto sintético formam, pois, binário que, continuando apenas pictoricamente a observação direta, defende-se, no próprio terreno de seus atos, da intrusão sorrateira da memória e da imaginação nos vazios onde o sensível hesita ou relaxa. Firmando-se descontínuo e desterrando as potências cegas de integração, o binário quer percepção e gesto ativíssimos na incompleteza definitiva de seu sensível operar (no que a visibilidade desobstruída apenas remedia) quando tentam completar os excessos lacunares. Zombando da sedução teatral e substancial da identidade memorante e imaginante, a inconclusão não enfraquece a força dos atos, antes os fortalece sem fraqueza, pois, desbaratando as unidades intentadas da cegueira, também esfria a ansiedade por estilemas que, no conjunto dos trabalhos, façam reconhecer classe geral identificadora e, além, originalidade, tal pintor, cristalizado em singularidade de hipóstase. Em consequência, recusam-se espectadores de avatares da mesma identidade, instam-se vedores que sigam saltos e nexos na descontinuidade continuada que a pintura propõe enquanto encaminha da imagem antes aos processos escuros que aos procedimentos a si mesmos desvendados. O empenho da observação direta não se fascina com a miragem da percepção espontânea e, inversamente, não é por dissipá-la que tem recaída em modelo, quer no apriorístico do não isto que, ex machina, dirige os atos com matriz combinatória, em essência iteradora, quer no arquetípico de qualquer gênero, ou espécie, que reconduz, Deus, o percebido à Idéia, identidade que o emenda como variante gerada de rígida regra de convergência. Operante só a pragmática da observação direta, o gesto que estende o que o olhar lhe assinala vai deslocando, por sua vez, o filtro da própria percepção, revezamento imanente de análise e síntese; devido à descontinuidade de atos sem modelo prévio, o revezamento esfacela a identidade e faz a seleção no visível pelo binário girar o que seria expurgado como incôngruo pelos cânones da conveniência. Gelando a representação, a imagem não se concebe como reconhecimento de um primeiro – isto – e sim como produção hesitante nos processos e certa nos procedimentos. A pragmática desvia-se da representação pois não fecha a imagem ao objeto que, foco interessantíssimo da percepção, nem é apagado nem incluído nela para ser reconhecido. Atento ao objeto e transformando-o com a mão que faz ver e a percepção que faz pintar, o binário roda a referencialidade fora da representação, uma vez que aquela é efetuada na constituição da imagem com tensões soltas e articuladas, que renovam visibilidade incessantemente diversa: ambiente.

No desenho operam, claríssimos, dois princípios da pintura cabraliana: o regime molar, que retém relações e intersecções tensivas, efetuadoras de composição oscilante; o regime molecular, que considera interações por contiguidade, produtoras de materialidade vibrátil. Molecularmente, os desenhos resultam da interação de brancos e pretos, de suporte e nanquim; diversificando os pretos por espessura, comprimento e saturação de tinta, diferenciando-os, ainda, com traço firme e tremor no traço, o pincel dirige essa profusão de modos, desobviadores em seu conjunto, contra as pressões de centramento e unificação da imagem. A multiplicidade molecular de pretos metamorfoseia o branco que, sacudida a indiferença do suporte, estilhaça-se, eleva-se, dissemina-se. Vibráteis, os brancos são sentidos como os pretos, impedindo suas iterações a constituição de cena, que requer suporte uniforme para ser invisível, e de substância, que assim também deseja o fundo para se destacar lisa sobre o seu louçado. Diversos e intensos, os brancos mais os pretos determinam pontos, linhas e superfícies como singularidades materiais, que nomadizam e não procuram centro, seja este de interesse ou de composição. Molarmente, abolidos no molecular sistema hierárquico e seus humanismos, o descentramento evidencia continuidades e descontinuidades em toda a composição, na qual o olhar migra por cascas e superfícies. Referencialmente, o braço da figura engata a folha de bromélia, que engata página de outra, que engata um nada, que engata a dobra de cortina, caminhos que alumiam a supra-objetalidade do desenho. O próprio fundo, bastante grande para receber tais atos, transforma-se material, em superfície encarquilhada de mossas e cavos, vincada por caminhos múltiplos, que conceituam espaço anti-cênico, anisotrópico, desativada regra transcendente. A anisotropia espacial, configurada por percursos muitos, e renovados, é produzida por composição oscilatória. A vibração molecular e a oscilação molar, geradas da interação, ou contiguidade, e da intersecção, ou composição, respectivamente, insistem no materialismo do desenho de Cabral.

Embora os trabalhos se realizem em situação estável de pesquisa, exercida pelas relações do binário, sofrem estremecimentos incessantes que, poupando a pragmática mesma de análise e síntese, atingem a imagem e a renovam. Está menos nos procedimentos, atos que, por certos, se conhecem, do que nos processos, que se ignoram, por imprevistos, a energia transformadora. Os procedimentos combinam-se em sistema, aqui mesmo exem-plificado pelos brancos e pretos do desenho, que, recusando preceitos retóricos do significado, iconografia, e do significante, composicionismo, genéricos na subsunção ao saber oceânico dos signos, não se deixam conter por combinatória estreita que a enquadre em matrizes, mesmo pictóricas. Esquivando restrições, os procedimentos formam sistema móvel, no qual uns deles entram e do qual outros saem com os abalos e as transformações que o montam desmontando, eficácia da irrupção do singular (o que não impede manifestações depressivas, a reposição e, até, a degradação do próprio conhecido) na produção com pressupostos. Os processos não nos têm, inoperante conhecimento prévio definidor: inopinados, materializam-se escuros na imagem, sendo apenas desvendáveis depois de efetuados e, insuflando nela singularidade, sacodem o sistema procedimental. Enquanto os procedimentos luzem constantes na imagem, os processos nela se surpreendem cintilantes: quando se dão a conhecer, transforma-se em elementos imanentes ao sistema e, já mesmos procedimentos, abalam-no nessa sua introdução. Não admira que na pintura cabraliana o movimento da fixação de procedimentos e da comoção de seu sistema por processos não dê azo a instrumentalização de parte a parte, sendo disso reveladora a própria sequência de seu trabalho, desde o começo com a pintura paulistana de vinco pós-impressionista, que ainda nele se entremostra, ficando patente, à medida que dela se afasta, o revezamento de constâncias e solavancos na imanência despreziva de imperativos de superação e finalismos de outra e qualquer sorte. O sistema que incorpora o tremor e o tremor que arruína o sistema também se fazem notar nesta exposição: selecionados os trabalhos no intervalo dos extremos exclusos do procedimento, quando patina, e do processo, quando tropeça, prevalecem os coerentes em detrimento, conquanto relativo, dos descontínuos, e mais nos desenhos e aquarelas que nos óleos.

Na aquarela persistem alguns dos princípios do desenho, porém modificados e especificados; também o suporte insiste nas grandes dimensões, pois recebe pinceladas largas de gesto hiper-sintético. As manchas que nele se espraiam são materialíssimas e, evidenciadoras do gesto, mobilizam minudente percepção: como a execução se solta no rigor, a largura, o comprimento, o sentido e a curvatura das manchas condicionam as pinceladas subsequentes, redobrando-se o esforço analítico. Essas distinções de cada mancha, referidas ainda ao conjunto delas todas, determinam os regimes molecular e molar da aquarela. Molecularmente, as interações materiais metamorfoseiam o suporte uniforme e branco: onde poupado pela tinta, ele se faz incluir entre as cores da paleta e vibra na interação com as vizinhas; onde por ela coberto, revela-se como modulação produzida na aplicação do meio, transparência deste, modificada pela saturação; onde os vestígios de passagem das cerdas do pincel listram a tinta, trepida variegado. O branco assim se multiplica, sobe e se propaga, muito diverso: como cor, que participa da paleta; como tom, que lhe estende a gana; como continuidade, que a ela dá cons-tância, o que é raro; como salto, que é o comum, nas diferenças de cor a outra e, principalmente, de um a outro vinco de cerda. A contiguidade não opera como no desenho, no qual os muitos pretos disseminam o branco, uma vez que gera vibrações com o espectro dilatado da paleta. Na interação, o molecular destaca princípio distinto, determinado pelas próprias pinceladas, que, manifestando materialidade cromática, ainda faz valer a da justaposição: não se produzindo a vibração com o tremor e a decisão do traço do desenho, senão com a orla que separa mancha de outra ou com a raia que diferencia a própria mancha em si mesma, a contiguidade, sobre ser ação cromática, é tonal e, assim, ou contínua nas áreas uniformes ou intermitente nas listradas. Exercendo-se a ação molecular nas cores, dinamismo de complementares, por exemplo, faz-se, também, mais material ainda nos vestígios do gesto, riscos e saltos do pincel. Molarmente, a justaposição enuncia a máxima da limpeza, frescor de aquarela que, desmontando pinceladas sobrepostas, preserva do fanado sua flor; limpa, a composição é constituída de superfícies dinâmicas pela disposição das cores que, embora percorridas de maneira múltipla, são balizadas pelas linhas de força das aplicações gestuais. Forma informe, a mancha produz espaço qualitativo por composição oscilante, afastando o homogêneo e quantitativo, associado à perspectiva linear.

As relações entre desenho, aquarela a óleo não se hipertrofiam, lineares, pois nada prescreve progresso na passagem de meio a meio e nada ordena a instrumentalização de um deles como esboço ou estudo preparatório de outro, preestabelecido subsequente: completos em si mesmos, os experimentos são suficientes em cada um deles. Dos três, o desenho é o que mais se afasta dos restantes, no molar e no molecular; mais curta é a distância da aquarela ao óleo e, reitere-se, não encaminha a subsequente que a dirija, por já sabido, manifestando-se a suficiência dela no transporte da pincelada; menos experimental que aquarela no que concerne à vibração de cerdas e saturações, o óleo pesquisa a espátula relativamente aos recursos do pincel. Não se reconduz, assim, o óleo à coroa, ainda que a recusa a precedências não enclausure os meios nem impeça a ordem acima indicada como sucessão entre outras efetuável. Correlatamente, as ideias produzidas na pintura não traduzem outras, principais ou da espécie diversa, das quais seriam, exteriores, edulcorada ilustração. Repelindo a passividade que assim que lhes é frequentemente assignada, a pintura faz circular as ideias que experimenta em determinado meio; transitando e dialogando, especificam-se sem, com isso, renunciar ao que podem ter em comum: exemplificam-no as ideias de regimes molar e molecular, de composição oscilante com suas superfícies e caminhos, e de interação vibrátil com seus fundos aflorantes e dinamismos cromáticos. Não se elevam, para a pragmática, tema, narrativa, efeitismo, como finalidades que a imagem deva refletir; produto de procedimentos e processos, relacionados com as pesquisas tópicas, espaço, figura, ambiente, a imagem cabraliana despreza a transcendência de hierarquia, cânone, decoro, classe, impeditivos de experimentação com imprevisto. Subtendida pela produção, a imagem é resultado, apenas, de pintura empenhadíssima em pensar, nos atos que a fazem, as relações do gesto e da percepção. A mostra dos trabalhos de 1982 – 1983 explicita os diversos movimentos da pintura de observação direta em que se determinam ideias antes esboçadas e se propõem outras, em tudos novas.

No óleo retomam-se ideias do desenho e, ainda mais, da aquarela; avançam-me também as que apenas no óleo se podem propor, manifestando o conjunto delas as regularidades e as descontinuidades da produção. Sequenciados cronologicamente, os trabalhos expostos evidenciam as diferentes particularizações do revezamento do sistema de procedimentos, seja dos tomados de outra parte ou dos desenvolvidos de si mesmos, e dos processos que os comovem e transformam.

Na Figura junto à mesa assenta-se, definida, a paleta surda dos óleos de 1981–1982 e ratifica-se o destaque que dão ao nu em de-trimento do espaço. Empregando os terras, o trabalho faz-se com pincelada liquefeita e definitiva, experimentada incessantemente na aquarela; não se notam arrependimentos na justaposição efe-tuada por gesto hiper-sintético, revelando-se uniforme e variado, e variado ou da saturação ou do raiado, o branco da tela.

A Figura e panos, cerrados os experimentos com paleta restrita, estampa as cores, no limite puras, que irrompem, súbitas, fazendo vacilar o sistema firmado na Mesa. As complementares insinuam-se ativas ao tenderem a composição, dinamismo de verde e vermelho, no molar e no molecular; luz de claro-escuro, a cor também acende o corpo mais à frente, conferindo-lhe plasticidade os valores. O espaço secunda a figura, não se constituindo como foco de experimentação específica.

Com a Figura à porta escancara-se a ideia das relações de complementares dinâmicas: o eixo vertical do suporte opõe violeta e amarelo, molaridade de áreas extensas de cor; no molecular, interagem verdes e vermelhos, aqueles como sombras que recuam. Estes como luzes que avançam, produzindo-se vibração e tensão no corpo. Sendo a interação molecular dirigida por relações molares, a lógica da composição é a das oscilações, que desmentem verossímil objetal.

Da Figura na cadeira ergue-se ideia rompedora que não tematiza o uso do pincel, senão os recursos da espátula. Conhecidos os efeitos da justaposição por pincel, que cultiva a flor e a limpeza da tinta na transparência iriada de manchas com orlas e sulcos, intromete-se a alteridade da espátula, que estende óleo ainda mais florente e puro, pois menos manipulado, enquanto dilata os recursos do regime molecular. Aplicando tinta saturada, a espátula vela o suporte e ganha a luz ao perder a transparência: perdendo a refração do fundo, do qual apenas cuida o pincel, conquista a reflexão da luz pela matéria saturada. Limita-se o pincel às sombras e meios-tons; restringe-se a espátula à materialização da luz, rebatida pela película de tinta: refração do fundo e reflexão da pasta, a Cadeira é feita de matéria rala e matéria graxa.

Sobre a Figura no tapete trama-se outro espaço. Ampliado por duas perspectivas, a aceleradíssima que afunda a figura, pernas enormes, cabeça ínfima, e a um tanto retardada, sala aumentada, ambas conflitantes no entorno em que a porta e a mesma cabeça tendem a se tocar, o espaço é constituído por transgressão de prescrição perspectivista, sua incongruência, reforçada ainda no crescimento descomunal do vaso à frente. Sobredeterminam-se por ato cromático os desencontros, em que o violeta e o amarelo são complementares acordadas enquanto os vermelhos do corpo e tapete, que avançam de trás, e os verdes do vaso, que recua da frente, oscilam tensos, molaridade. Nesse modo transgressivo, efetuado de procedimentos conhecidos, a figura perde o comando na composição; o agigantamento do espaço emancipa-o da condição de entorno e, evidenciando-se anisotrópico no encavalamento dos quatro procedimentos aludidos, que são os quatro caminhos do olhar, firma-se em composição descentrada.

Para Dracenas e figura configura-se espaço dominador que, situando os objetos, obtém o que tentava o Tapete na secundarização da figura. Fazendo-se com as coisas e sobre elas prevalecendo, o espaço impõe-se à composição. Sem recorrer a procedimentos, perspectivo ou outro, que o tecem no Tapete, tem limites indeterminados e vedor descentrado. Intromete-se outra paleta, fria, que não anula a precedente, mas a amplia. Com a intrusão das novas relações de cor, insinua-se metamorfose no sistema, a pesquisa dos meios-tons.

Através da Vitrine vê-se a paleta glacial em evidência. A pincelada estende-se hiper-sintética enquanto a espátula opera o corpo da figura. Expõe-se a linha como novidade da Vitrine: não se desenrolando como contorno a ser enchido nem se estirando como duro classicismo, aplica-se menos para efetuar referencialidade do que para ser transgressora de manchas e transgredida por elas. Relação compositiva de intersecções, alegorizada na vitrine da Vitrine pelo corte e deslocamento, por ela feitos, do corpo: refração figurada. As linhas são compositivas, pois, vincando o canto da sala contra o triedro habitual, conferem indeterminação ao espaço que também se agiganta sem limites assinalados, torto.

Pela Figura com aráceas entrelaçam-se frieza de paleta, pontuada por vermelho na figura, e meios-tons modeladores, ação exclusiva do pincel. Embora comprimido, o espaço não é entorno da figura, nem seu mar; concebidos um para a outra, evitam a compactação, por proximidade do olhar, do espaço: circulando pela arácea e envolvendo todo o corpo, o espaço constitui-se nem mais nem menos suficiente que a figura. Pensados e executados simultaneamente, em ambos se afirma nova irrupção dos processos, a do ambiente de dois elementos pictóricos insótimos.

Como nada impede a intromissão do outro do sistema, nenhuma espécie de identidade se constitui: nem a do envolto a ser desenvolvido em progresso predicativo, monocentrismo linear, nem a do negativo, igualmente previsível, que desdobra e reunifica a identidade com suas determinações para cima, monocentrismo espiralado. Em Cabral, a pintura descentra-se na lacuna da produção, na incompleteza de gesto e percepção, na impres-critibilidade de interações vibráteis e composições oscilantes. Solta de azimutes, engenha espaço e figura, alteridade irredutível a subsunção recíproca pois mostrada diferencial pelo ambiente.

Relacionando-se com as anteriores, a idéia pictórica de ambiente distingue-se do clima, efetuando como expressividade empática por conveniência de emoção, que prescreve em representação centrada. Semântico, cativa enquanto anestesia espectadores: difere do ambiente, que, descentrando, não o representado, senão o figurado distanciador de regra transcendente de decorum, ou conveniência, deseja vedor sensível e excêntrico. O ambiente é material, produzido na imanência dos regimes molar e molecular: não significa, assim, na estância do aberto, insiste nos deslocamentos superficialíssimos da designação; por isso, discrepa ain-da da interioridade, que até afunda, profunda na representação expressivista. O ambiente indica e mostra, consequência da pintura surda a qualquer sorte de semantização: é situador de ele-mentos e não contextualizador deles, pois não dá sentido ao que não o quer; mostrando figura e espaço na relatividade de suas situações, singulariza-os sem a estes pertencer.

Terceiro como o qualitativo da designação, tem o tensivo da pintura que o produz, descontinuidades sem rumo, e, incidindo na alteridade, designa, situador, a própria imagem, singularizando-a também, sejam ou não isótimos os elementos. O ambiente lança a designação em várias, e simultâneas, direções: confirma a imagem em seus efeitos de referencialidade enquanto os demarca de naturalismo de reconhecimento e representação; como a designação se reforça pictoricamente na instabilidade molar e molecular da imagem, a distinção dos elementos não se segue de reconhecimento. Faz, também, que a imagem motive o título que a designa, barrando intentos de ilustração: a direitura da observação, nela, não pede metáfora, idealidade, opera sinédoque, materialidade, na homologia da designação elíptica e diretíssima do título e daquela direitura do binário que o motiva. Faz, ainda, que a imagem se auto-designe, singularizando-se ao apontar um este, que é um eis, ecceidade, que é ela própria, propriamente, ipseidade; dêitica como esta mesma, haecceidade, é descontínua como o ato designativo, e cintila. Faz, enfim, que a imagem designe receptor, que é vedor excêntrico e experimentador sensível ao tempo: intermitente a designação, a imagem rapta o vedor que a assalta e sai calado, pintando, assoviando, discorrendo: este texto, que designa as imagens e a pintura e que, a elas atento, afeta conceitos. Ope-rado pela pintura e situando elementos e imagem, o ambiente extravassa o mostrar no movimento da designação. Estirando-se por todos os lados, ele é o estiramento mesmo, que mostra a singularidade estendida do este e do próprio inclassificáveis, desclassificadores da generalização, como a dos caducos intimismos e expressionismos: acúmen sensível de imagem, vedor, experiência, tempo, nome, exercícios, o isto mesmo do ambiente é lâmina que aguça esta pintura.