Texto in Catalogo - Pinturas Recentes, 1999

Leon Kossovitch

Em Cabral, distinguem-se dois conjuntos de trabalhos: o que. Como pintura, desenho ou gravura, expõe o resultado do processo artístico e o que, ligado a ele sem contudo ser exibido, dá-se como resto da produção. Este conjunto associa-se àquele como instrumento, mas, menos em relance, como o que não se despreza ou se dispensa, estando, enquanto resto, vinculado à elaboração da obra. Nem escória, nem de dejeto, o resto é o florescimento dos elementos intervenientes no processo artístico como vestígios do que, sem cálculo, previsão, nele se vai escrevendo em corres-pondência com o que ocorre de modo aberto nas obras de tela ou papel. Nestas, uma escritura menos abrupta se estende em superfície oferecida aos olhos do Museu, à diferença da que escancara o processo, legível no conjunto de vestígios casualmente aglutinados, a que Cabral chama “objeto”.

Estando nas pinturas aqui expostas patente a contemplação museológica, nos objetos outra museologia e outra clareza se propõem: além da sublimação do instrumento a objeto, a museologização deste destina-se, não a olhos fixados a obras, mas aos movidos pela pulsão, pois tinta, instrumento, suporte, corpo, perdidos para a obra, produzem-se cumulativamente sem prévia triagem, o que ressublima o objeto a testemunha, enquanto o estatui como olhar. Testemunhando o processo de que é, aliás, parte diretamente envolvida, a um tempo refugada e mantida, o objeto, como o exemplificado pela aglutinação de um facão, de tinta espessa, de lacerações por impacto, de incrustações de tecidos, cerdas, papéis, enfim, irreconhecível como instrumento, atesta, no arbítrio dos saltos, fricções, repetições, o afloramento descontínuo do desejo. Dá, por isso, testemunho eloquente nos intervalos, luminosos porque casuais, do processo, erguendo museu arqueológico, porquanto primário, no qual se lê como desejante o museu artístico, sem que, todavia, postula-se hierarquia entre ambos. Elucidário, o museu do objeto pertence às antologias, abrindo-se as flores na exposição de 1991, na qual Cabral engalana a galeria de Paulo Vasconcellos com o negrume que lhe pinta a saída para o deserto, ali iniciada também com cinzas que escorrem, recobrindo as rutilantes cores e desenhos elegantes com que antes se tornava amável. Em tal travessia, desprendido de ação e paixão, surge o processo aglutinativo, elucidado no objeto e, por extensão, na obra, alheando ambos a grade reguladora que cativa, capta, captura a pulsão escópica, na qual também o desejo capitula. Duas escrituras do desejo, os dois conjuntos participam em ordem que os torna comunicantes, pois um se lê no outro, um se exprime no outro, interexpressão, ou correspondência: a aglutinação às contém como conceito que considera a elasticidade dos elementos intervenientes. Suporte, tinta, instrumento, corpo, modelo, tudo que, enfim, participa na pintura de Cabral passa, assim, a se ordenar fora de hierarquias petrificantes. O corpo alivia-se do ativismo, assim também o instrumento, emancipando-se do apassivamento correlato a tinta e o suporte: dispensados os apóstolos da autocracia do sujeito, assim, da ação e da paixão, tudo é leveza na vibração do neutro. Trincha, vassoura, espátula, desempenadeira, facão, esmagando, deslocando, estirando, engrumando, ocando, espessando, raiando, desinstrumentalizam-se em aglutinação que não é pegajosa porque não admite exterior que produza sujeições ativas e passivas nas relações com corpo, tinta, suporte, até mesmo modelo, os quais, não menos neutros, também ignoram tal oposição. Desatado o nó, muito narcísico da subjetividade, o neutro cintila como levíssima luz: por isso, não se prescreve aqui ao artista presteza na execução pois, longe de doutrina, ela é decorrência lógica da aglutinação assim concebida, brilhante como instantânea em algumas litografias e dese-nhos, riscante como intervalar na maior parte das pinturas, não se excluindo delas retomadas e abandonos do processo, pois o traço de luz não quer luzir sucessos. Na aglutinação, o corpo também é luz, imponderável no tempo, pois estranho ao épico de uma subjetividade ativíssima: nem afirmativa no sujeito cheio de si, nem negativa no que, desfalecido, se enche de vazio, a aglutinação é circulação de elementos descontínuos.

As cascas, com as quais, em 1983 Cabral inicia caminho singular de pintor, exemplificam, espacializando, a aglutinação como processo que, fugindo de isolamentos e concreções, mira-se no afastamento da forma aprisionada pela coisa. Superfícies tensivas, as cascas têm a leveza estrutural das autoportantes, uma vez que não se restringem às delimitações que as coisas tendem a impor: nestas não se demorando, a visão relaciona-se com o gesto em binário que tanto mais se acelera quanto mais o corpo e o pincel com tinta rala aliviam em seu concerto. Suplantando as coisas, mas para não as elidir, as cascas abrem passo a uma pintura que se firma ulteriormente, quando a tinta espessa e os recursos que com ela se estendem prevalecem em pintura que participa na atual, relativamente ao mover, esmagar ou raiar e suas modalidades. Muito ativa, essa pintura é afastada nos anos 90, quando a aglutinação se instala, fixando-se alguns dos recursos então pesquisados como repertório assimilado, assim, impensado, que a presente exposição evidencia. Como impensado, o repertório se atualiza com presteza na aglutinação, mantendo-se onde e quando outras possibilidades não são exploradas. Também por isso, nada se postula como exterior à aglutinação, quer como princípio fundante ou autorizativo, quer, na outra ponta, como obra separada do processo.

A obra não se desprende, pois, da aglutinação, sendo, como tal, habitada sem que o artista saiba como e quando isso se dá: pintura, desenho e gravura são, como obras, o que, segundo modos e tempos diferenciados, subitamente irrompe, levado pela presteza e leveza de uma neutralidade imprescritível. O que surge não é esmado como gesto de Mao e está fora do alcance da visão: Aquiropita é o nome do que constitui a obra como obra, superando a habitação a função temática, iconográfica ou outra.

A obra é um devir que implica o cochilo do pintor devaneante, realizando-se o desejo em lance imperceptível de risco intermitente durante a circulação do olhar. Não havendo recurso à miragem subjetivante, a obra se instala como intensidade e tensão, que, escapando às estases, zonas mortas em que a tinta estagna, opera como casca autoportante, compensadora de tensões vivas nelas deflagradas. Produzindo-se no suporte tensões molares e intensidades moleculares, desdenha-se o jogo do ativo e do passivo: o estabelecimento de regime, a um tempo vibrátil e potencial, instala a obra, Aquiropita, como inseparável da aglutinação enquanto conclusão sua.

Das duas direções pictóricas aqui mostradas, há a que faz voltar a já referida exposição de 1991, cuja sequência se materializa na de 1995, na qual a aglutinação traz como sobreveniência a primeira obra de Cabral, a do humor do começo dos anos 70. Esta direção, inseparável dos painéis aqui expostos, coexiste com os retratos e figuras também aqui expostos, coexiste com os retratos e figuras também aqui exibidos como a outra direção pictórica. Tal coexistência só é aparentemente paradoxal, pois apenas em relance retrato e figura, implicando modelo e observação, são incompatíveis com figuração que brota sem recurso a nada que não seja matéria pictórica. Essa correlação deve considerar outra dificuldade, decorrente do sentido da pintura de observação dos inícios dos retratos em Cabral, que, surgindo na segunda metade dos anos 70, quando ele estuda a pintura paulistana dos anos 40 e adota a distinção de gêneros que esta mantém como fixada nos fins dos séculos XIX e começo dos XX impressionista e pós-impressionista. Embora a observação nunca seja abandonada por Cabral, o dispositivo pictórico montado pelo gênero, por mais que insista, é deslocado nos dois últimos anos, fazendo-se a passagem da pintura dos retratos e figuras à pintura dos painéis.

Assim, recentes, os retratos e figuras desta exposição diferem das anteriores, nos quais, inicialmente o modelado e a mancha, depois as cascas, produziam uma figuração que alheava apelos sentimentais, cingindo-se a poética à estreiteza do agigantamento monumentalizador previsto como extremo poético do gênero.

É certo que as cascas, deslocando da pintura a coisa, fogem ao modelado e à mancha, mas não introduzem com isso uma poética, então ainda refugada como “expressividade literária”, logo, grandiloquência. O repertório gestual, entretanto, mantém a monumentalidade que, supra-objetal na pintura das cascas, difere da modelante ou da manchada por se fazer como combinatória do gesto e da matéria, variados por diversos aspectos e propriedades. Essa combinatória mantém-se em grande parte da pintura de retratos e nas figuras desta exposição, pois constitui repertório extensível a elementos pictóricos novos, expressivos de elementos poéticos também novos. A interexpressão , aqui, implica, sem que se possa assinalar, nela, um primeiro, o aparecimento de uma poética da figura em correspondência com a introdução daquilo a que Cabral chama, não sem ironia, “claro-escuro” e “detalhe”. O vulto tende, nestes trabalhos, a um branco sombreado que, longe de produzir modelado, aplica-se também ao corpo, em diálogo com traços mais escuros ou diversamente coloridos que despetrificam a figura sem que pormenorização ocorra. Trata-se de empaste que dá ênfase a algumas áreas do vulto, muita vez de difícil identificação: Cabral não valida uma similitude de espécie, como ironiza, “pantográfica”, na qual se supõe que o modelo seja exatamente transponível para o suporte, pois o reconhecimento não decorre de alguma semelhança físico-métrica dada, mas do traço passional, caracterial, temperamental que, ligando retrato e retratado, a nenhum dos dois pertence; há adequação da seme-lhança fisionômica ao traço, postulado de decoro e verossímil da poética pictórica que, em Cabral, consulta o gênero, o mais das vezes cômico como desproporção que faz rir sem dor.

Retrato e retratado se vão interexprimindo com a circulação do pintor entre o suporte e o modelo, em sua visão amatória da comédia. Antenando o traço que os liga, aglutina-lhes a visão e visionarização interexpressiva que, em tal ou qual ponto de inflexão, mudam de sentido. Dispensado o desenho delimitante, é da matéria que se extraem o retrato e a figura, os quais, aparecendo e desaparecendo, brincam de esconde-esconde com aquela: a figura, sucedendo-se seus aspectos, inclui ou retira matéria, instrumento, gesto e, inversamente, os episódios matéricos mudam a figura. Do começo ao fim da sessão de pintura, Cabral é operado por dupla e separativa visão, a dirigida pela matéria, a orientada pela figura, podendo a elas acrescer-se uma terceira, que já não é visão, mas visionarização: do repente, a visionariedade liga-se à irrupção de figura não formulada, que apaga, como a figura visual, a matéria. Por isso, não é só no repertório de gestos acrescidos dos geradores do detalhe e do claro-escuro que o jogo das duas visualidades e da visionariedade estabelece com a matéria: as figuras vão emergindo e submergindo, o que também se verifica no grupo dos retratos em que o jogo de pinceladas curtas e largas de trinchas retomam as cascas de 1983, mas espessas e variegadas. Homogêneas, estas não ostentam figura visual, o que suscita a irrupção de outra, visionária, quando do eclipse da matéria vibrátil, estabelecendo-se conflito e substituição de matéria por figura, alternadamente. Os eclipses exibem a partilha que se produz na pintura, definindo-lhe a potência, neste conjunto de retratos, exacerbada.

O jogo do visual e do visionário, assim como o da matéria e da figu-ra, constitui a poética das aglutinações recentes de Cabral: são os painéis que aclaram o certame da tinta e da figura visionária, não se figurando neles visualmente coisa alguma. Quando brota a figura, desaparece a matéria, sucedendo-se umas às outras as próprias figuras visionarizadas: não há só conflito, mas complementaridade, a evidenciar a inextricável ligação da matéria e da figura. No conjunto das pinturas expostas, alternam-se contemplação e desejo em excludência recíproca e simultânea colaboração: irrompendo a figura do desejo quando a visão se interrompe, o lance, enquanto a visualidade é aplicação e continuidade. As figuras visionárias são de precária fixação, a demonstrar a intermitência da circulação desejante, ao passo que as visuais tendem à adesão fixativa, a ponto de produzir uma lembrança imperdível, quando são propriamente memória, monumento. Nestas pinturas e gravuras, Cabral aclara as relações do desejo e da visão, da matéria e da visionarização, das figuras geradas de pólos complementares e excludentes. Não é o inconsciente que se pinta em Cabral, mas em sua pintura ele pode irromper e, nela, não se rendendo a pulsão, mantém-se, embora produtivo, incapturável.