Entrevista Cabral, 2008

Claudius Portugal

O seu trabalho atravessa diversos caminhos – pintor, desenhista, gravador, escultor, professor e arquiteto, e atualmente, parece pelas últimas mostras, mais dedicado a pintura. Como é o processo de trabalho, o ponto de partida da criação, e como se estabelece a identificação de tornar-se desenho, pintura, etc.? Qual o pensamento ou tema ou imagem que ocorre para que se deflagre como sendo marco inicial da sua criação?

Primeiramente gostaria de falar sobre o conceito desenho, que tem duas dimensões básicas, traço e condução do traço. O desenho pouco modifica o campo no qual se propaga. Se tomarmos um fundo qualquer homogêneo o traço linear limpo isotrópico por oposição infringirá espacialidade tridimensional ao campo. Já o traço anisotrópico, sujo, tem a propriedade de criar raízes no plano enfatizando seu caráter bidimensional. Desde os anos 70, desenvolvo ideia de traço cuja aspereza e sujidade propõe plasticidade à linha no sentido de capacitá-la a criar raízes no plano. Diferentemente do desenho a pintura a meu ver tem embate direto com o plano à primeira pincelada. Entendo a pintura como tensão no plano e creio que quanto mais se caminha nela mais se tensiona o retângulo. Quanto mais realização mais tensão, sendo que o auge desta resulta na supressão da relação fundo forma. No meu trabalho sempre parto do desenho, que muitas vezes se institui como obra. A pintura enquanto processo varre o desenho e instala a tensão.

Desde o final de 60, o meu principal interesse era pintura. Co-mecei cursar a FAU por ser naquele tempo a principal referência para quem tinha como objeto questões artísticas. Lá, tive condições de estudar sistematicamente história da arte, traba-lhar na construção de objetos, bem como receber orientação de artistas professores, sobretudo de Flavio Motta. Nunca cheguei a desenvolver trabalho na área da arquitetura, e cada vez mais ao longo dos anos de escola meu interesse foi se centrando na pintura e desenho. A gravura e a modelagem surgiram como extensão do desenho e pintura, muito embora em alguns momentos tivessem adquirido no meu trabalho uma razão especifica. Duas margens balizam a criação; observação e instalação de imagens. A primeira não tem vínculo com imagem estabelecida previamente; o que se estabelece previamente é o objeto do olhar. No trabalho com imagens a definição dos significantes, bem como seu direcionamento e destinação ao tema em proposta gera invariantes conceituais. Assim segue o rio condu-zindo o exposto.

Sua pintura é espessa, matérica, através de pinceladas rápidas, ritmadas, mutantes na sua direção, às vezes numa abstração que se revela por nos fazer ver um construir e um desconstruir a figura. Esta tensão é um dos movimentos que temos para apreender seu trabalho?

Com relação à segunda questão proposta já contém na formulação parte de si própria resolvida, pois é no contínuo de um sistema em expansão que os últimos enfrentamentos redirecionam e secundari-zam os anteriores. A matéria vai se espessando com as sucessivas intervenções e não tem fim em si mesma; bem como o gesto procura atingir a intensidade do visionarizado através de ato corporal, pretendido único e inteiro. A questão da tensão que você assinala é pertinente e é esta que vai soldar o fundo à forma e vice-versa, a fusão fundo-forma é pólo da tensão. Posso também dizer sem medo de turvar, que a figura destina-se a pintura.

A partir do dado acima esta é uma maneira sua de discutir a forma da pintura de hoje? Um jeito de trazer à tona a discussão da visualidade na arte?

Com certeza é o mais relevante a considerar!

Já foi escrito que sua obra “embaralha a visualidade”. Concluindo dizendo que ela “organiza as imagens e nos propõe o jogo de observá-las em um fundo pulsante de vida”. Como vê esta opinião e como é a sua relação com crítica de arte?

Relaciona-se, creio, com a devida licença poética, à ideia de destinar a figura à pintura. O texto em questão refere-se a mostra de 1986 da galeria Millan, naquele momento já existia a tensão figura fundo, mas ainda antes do ponto de ruptura que ocorre na série exposta no MAC em 1995. Entendo que a crítica de arte tem seu mais legítimo desempenho no desvendamento do processo de criação. A crítica enquanto ilustração ou poética paralela pouco ou nada proporciona para os abr’olhos do caminho.

Na sua pintura, pois nela há a cor, a textura, a pincelada, uma pintura ocupando todo o espaço da tela. A cor, com uma gama diversa e dramática; a textura, no espessamento das tintas; a pincelada através do gesto. Como é dito na apresentação da mostra, este é o corpo a corpo do artista com a pintura?

Sim.

No início de sua trajetória algo é dito sobre “a estética do achado” e que isto joga com o imaginário da ambiguidade. O que é a “estética do achado”? Esta sobrevive hoje no seu trabalho? E quanto ao “imaginário da ambiguidade”, o abstracionismo de agora é uma visualização deste?

A ideia do achado; da estética do achado é elíptica e como tal tem dois focos. O primeiro na bricolagem, no fisgar de uma imagem a partir da pega de determinada percepção. Nesta ação o peixe fisga o fisgador, a imagem percebida se coloca como isca. O segundo vem da percepção da forma revelada, que deve conter uma possibilidade mais plausível, o abrir-se de nova percepção; porvir. Este mecanismo ainda vigora quando há permanência da figura. No caso do desaparecimento desta, creio sugerir tratar-se de abstração no sentido dado pela pintura moderna, conquanto proponho outra coisa: a relação fundo forma se rompe, e em seu lugar instala-se espaço tensional. Onde havia figura passa haver sua ausência, onde havia fundo agora impera emanação da figura ida.

Outro dado de sua trajetória é a incorporação nas suas pesquisas da busca da plástica, adensando os contrastes de claro-escuro, estando o desenho aberto para um grande espaço de fundo, normalmente neutro, no branco do papel, para um primeiro plano inteiramente dedicado para se ver solto o desenho, e uma pintura com a total ocupação do espaço, num embate de cores e os gestos das pinceladas. Qual a realidade física que você procura ao criar o desenho e a pintura por estes caminhos?

Basicamente, 7 em 1. Mas é oportuno colocar que a materialidade do desenho se opõe de forma hiperbolizada à pintura. A ideia desenho está vinculada à imagem significativa, lida através da forma. É signo no deserto, exime-se da virtualidade relacionada à variação de matérias, dos deslocamentos das pinceladas, dos rastros deixados pelas sucessivas retomadas da pintura, pela sucessiva expansão da figura sobre o fundo.

Sua obra é dita pela crítica como percorrendo o abstracionismo, o realismo, o expressionismo e o fauvismo. Concorda com esta reunião de “ismos” como definições ou uma síntese para vermos seu trabalho?

Não concordo. São aproximações grotescas. Aliás, um dos graves erros de abordagem crítica é o de associar formas artísticas pelas vagas aparências ao invés de se procurar elementos de relação entre processos de criação.

Há uma imensa diversidade na pintura que se expõe atualmente. Além disto, junto a esta, os pintores acabam percorrendo um momento de performances, instalações, vídeo arte, etc. Como vê a arte brasileira neste momento e, mais especificadamente, a pintura? E o seu momento particular agora?

A pintura no seu início criada entre grutas, ungida, exclusiva, é quando consolidada, passível de inserção em práticas socialmente estabelecidas. Os ritos na sua maioria destinados a espaço coletivo já tinham que conter elementos de comunicação. Creio ser um equívoco associar práticas de comunicação a informação estética. O momento da arte brasileira está em sintonia com a contemporaneidade global. A pintura foi perdendo o entorno necessário a sua propagação por exigir relação reflexiva, disponibilidade sensorial, dificilmente aportada fora de nicho diferenciado. As instalações, os vídeos, as performances tem vocação original voltada para as ações midiáticas, espaço da comunicação. Fazer pintura mantendo-se na corrente universal que alinha Lascaux a Giacometti exige esforço de permanência pouco afeito ao imediatismo nervoso dos mercados. O meu momento, Claudius, como você mesmo sugeriu é de concentração na pintura e vizinhanças.

Como é esta opção do óleo, para quem no início realizou mostra de desenhos aquarelados. O que ele traz como vigor para a sua pintura?

As passagens por transparência, próprias da aquarela, foram me conduzindo a transpor para pintura matérica as soluções que demandam sucessivos planos de pincelagens. A dificuldade material do óleo, sua opacidade, sua inércia nos deslocamentos acabaram funcionando como desafio diante do gesto corporal, o que passa a exigir solução especifica para cada pincelada.

Esta é sua primeira individual na Bahia. Como vê esta apresentação num lugar onde ainda não apresentou mostras e como foram selecionados os trabalhos, são todos inéditos na exposição da Paulo Darzé Galeria?

Embora seja a primeira mostra que faço na Bahia, a relação com Paulo já tem pelo menos uma década. Neste aspecto me sinto em clima de continuidade de um trabalho, bem como, sinto oportuno seus desdobramentos. Os trabalhos da mostra são quase todos iné-ditos com exceção de duas pinturas expostas em 2007 em coletiva no Memorial da América Latina em São Paulo. O conjunto das obras elencadas para a mostra segue a seguinte orientação: pinturas, realizadas nos cinco últimos anos, figuras solapadas e figuras salvas; dando com isso ideia das possíveis latitudes de meu repertório no óleo. A escolha teve a contribuição dos olhares de Paulo e Thaís sob curadoria de Vera Novis.