Leon Kossovitch
Os Olhos, descorados neste deserto cinzento, escorrem. A sedução das cores opulentas em mulheres, flores, fica bem nos ambientes de Cabral; Hélio Cabral encontra-o em outro tempo, no das antigas cabeças, ambiguidades de humor, pois o que escorre não é pintura, pictura, = fictura, ficção cativante dos olhos. Enquanto a fabulação do símile medusa Cabral, Hélio Cabral flutua entre os nºs 1 e 7
Na instituição cativante, as grades capturam o olhar, escopia. Instituída como escopia de outra escopia, remotamente a da ins-tituição oratória, na qual fluxos – voz, gesto, vulto, vulto – são capturados em lugares de encontro e de memória, na disposição de instrução agradável e mobilizadora, seduções da persuasão, a pintura, não menos grade que ela, cativa. Destroçada esta proto-grade institucional, seus estilhaços românticos soldam-se com subjetividade e o que era escopia mais ou menos amável se exa-cerba e dói como angústia ou melancolia. Em Hélio Cabral, as pulsões do olhar não são escópicas: descontínuas, correm, trabalho.
“Trabalho”, não no sentido de ateliê, como procedimento em que a escopia pode exceder-se, ortoscópica, até nos afetos, mas no de “trabalho do sonho”, “trabalho do luto”, trabalho, enfim, pulsional. Entre os nºs 1 e 7, esclarecem-se os encontros e desencontros da produção de Cabral e do trabalho em Hélio Cabral. Nesta exposição, nada está supervisionado: água, látex, esmalte, urina, óleo, vassoura, pincel, fogo, mão, papel, persiana, tecido, tapete, pigmento, gesso, merda, recorte, telha não estão submetidos a triagem. Os elementos não têm estatuto e, desclassificados, são os aglutináveis do trabalho. Tudo cabendo – estando à mão, sendo achado –, dissolve-se o procedimento: equivalentes como inclusivos, os elementos não são escópicos, nem o é, por isso, o suporte, indeterminado quanto a formato, material, dimensão, estado. Sendo tudo aglutinável, não operam distinções hierárquicas nos elementos, nem se elaboram distinções conceituais de instituição, como as que discriminam o suporte. A arbitrariedade que o discrimina como superfície passiva é evidenciada pela equivalência dos elementos aglutináveis. Valorizando-se a cor e, em alguma medida, a matéria, julgou-se superada a passividade do suporte; esta, todavia, permaneceu, pois é em oposição ao gesto, tido como ativíssimo, que o suporte recua, apassivado. Na oposição, o suporte é considerado potência e o mais, ato: é o implícito casual da instituição, em que se distinguem concepção e execução, eficiência e finalidade.
O nº 5 é persiana velha, na qual não estão inscritos dejetos de pombas, pinceladas diversas, matema de humor e à qual tampouco se aplica recorte. Achada com os dejetos colados, a persiana ainda se aglutina com pinceladas de tinta, sobre as quais adere recorte, repetido pictoricamente em cima do matema. O humor circula porque os aglutinados são equivalentes, fluindo a significação por não se prefixar o sentido com elementos hierarquizados; nada se distingue como passivo ou ativo, nem mesmo o gesto, na aglutinação inclusiva. Apaga-se a oposição de suporte a inscrição, que dirige escopicamente a pintura de ação; abolido o casual – matéria, forma, eficiência, finalidade –, o trabalho, operando significação cruzada, é casual. Em Hélio Cabral, os elementos neutralizam a ação e a paixão e, tudo aderindo a tudo, ao lado de tudo, ou, negatividade, dissolvendo tudo, não assoma Medusa, assina Fortuna.
A escopia, como lugar ótimo de observação, é produzida com grade procedimental, previsão, provisão, supervisão. Constitui-se a grade como rede especifica de pares opostos, gesto/suporte, figura/fundo, estilo/iconografia, desenho/cor, etc., e como rede genérica de pares, ativo/passivo, causa/efeito, regra/subjetividade, alma/corpo, etc.. Combinando-se as duas redes, a grade, a um tempo, estende-se; as pulsões comprimem-se no olhar escópico. Não se remove a grade modificando-se algum dos pares: a recusa, por exemplo, da pintura em que a alma pensativa administra o corpo executivo não é mais que mudança de registro. A abstração, em que convenção, diga-se, sintática determina a ação do corpo, pode ser substituída pelo Expressionismo, que recuse qualquer regra em nome do gesto; em tal proposta, nem o corpo é, enfim, liberado, nem a subjetividade, enfim, destampada: pulsionalmente, a escopia mantém-se, sendo outro o registro. Lembre-se o corpo expressionista dos anos 50, que se atira, angustiado, contra o suporte, passivo na inscrição; tal corpo é existencialmente subjetivado, mas seus grafos são horda, ordem. Quanto mais se angustia a alma, tanto mais se apassiva a superfície, dita de inscrição, como depositaria de energias alheias, do corpo, da mesma alma. A oposição casual de ativo – corpo subjetivado como inscritor – e passivo – suporte como paciente da angústia – não é mais que manutenção da escopia, presentes os pares: modificados em seu sentido, instituem outra escopia, por exemplo, a expressionista-abstrata.
Investido, o olhar é pulsão parcial. Na instituição escópica, é o parcial de olhar não dirigido institucionalmente. A grade fixa limites, os do tempo, também regulados na proto-instituição. Mas, enquanto esta é prescritiva em toda a extensão, a subjetivamente soldada, nem tudo estipulando, fere: angústia diante do branco – tela, papel – do suporte, superfície obsessionada de inscrição – pintura, escritura (grapho: pintar = escrever); no fim, a melancolia, espelho de que a inscrição se ausenta, perda de objeto quase sempre no tempo inacessível como Tempo. Em Hélio Cabral, escorrendo o olhar, não há tempo, assim, nem começo nem fim. Nada de angústia expectante, branco, de branco, nada, na outra ponta, a do exílio da mão, de vazio de verdade vazia, melancolia, ou, na mesma transcendência, de cheio de outra, não menos vazia, mania. Não é Tempo: turva-se o reflexo da escopia narcísica.
Trabalha em Hélio Cabral pulsão anescópica, não de todo estranha à fresta felina, interessada em intromissão. Entretanto, “entre” sem inter–esse, não intervindo entre–ser, nexo positivado por positividades, aqui, psique e soma: “entre” vazio, escorrer, treiben: derivar. O olhar como pulsão é olhar de fronteira, não exatamente de fresta, pois “entre” não é um terceiro, determinado por psique e soma na medida em que, antes, delimita-os. Como psychischer Repräsentant, a pulsão é o legado do soma junto à psique; à medida que se aproxima da fronteira, o legado desinteressa-se do mandato de que está investido, muda de camisa e, não sendo de ninguém, é intermitência, descontinuidade. A pulsão do olhar anescópico não constitui continuidades e, conceito-limite, barra as causais e expressivas de alma e corpo, implícitas no Expressionismo. Este efetua o contínuo e por ele é efetuado: a expressão da alma pelo corpo e do corpo pelo suporte encena a lei aos três aplicável uniformemente; por ela, a alma causa o corpo e este, a pintura. Lei, a continuidade é expressivista, alheadora do pulsional, Sturm sem Drang, tempestade sem pressão, avatar fantástico do Romantismo. A pulsão é deriva: tem tudo do processo, como “processo primário”, nada, no conceito, do procedimento, o qual, todavia, é investimento libidinalmente, com a redução da intermitência a escoamento escópico. Há, assim, dois olhares, ambos pulsionais, como há Hélio Cabral e Cabral; enquanto o escópico deste escoa pela grade como libido viscosa, com perdas de carga e não infrequente dor, “processo secundário”, o daquele não é dirigido, escorrendo, intermitente, a libido. Neste sentido, Hélio Cabral está mais próximo do conceito de pulsão pura do que Cabral. A pulsão não escópia irrompe em tal ou qual momento, como se a desmescla de Cabral e Hélio Cabral estivesse desde sempre escrita. Conjunto de pinturas de 1990 singulariza-se na produção dominante do ano: retomada de cabeças do início dos anos 70 e seu humor agressivo; conquanto também seja escópico, o conjunto diverge da pintura de sedução, afetivamente. Os dois primeiros trabalhos desta exposição explicitam a remanência do conjunto de 1990, cujos monstros e cabeças não podem ser decepados do humor-horror de ambos, ridente. Contudo, a conjunto não se ergue como referência e, menos ainda, como paradigma do atual, pois deste difere no básico, exceto no humor. Nos tra-balhos da exposição, o conjunto de 1990 é o que está remanejado inconscientemente: sobreveniência, Nachträglichkeit; os vestígios mnêmicos – memória do olhar no olhar – ressituam – se em trabalhos pulsionalmente distintos, porquanto a sobreveniência se estende à aglutinação toda, assim, a técnica, ao gosto, à tinta, à figura, etc...
Nº 1 e Nº 2 são pintura. Não principiam com a figura, no que se distinguem dos trabalhos de humor precedentes: a figura sobrevém a pinceladas, que, a nada visando, difundem aparições. Nestas, explicita-se a sobreveniência de elementos escópicos, de figuras, cujo remanejamento se detecta no anescópico, nas aparições. Desativada a escopia, não há bestiário que classifique a aparição: não é monstro, que, misto, pressupõe partes reco-nhecíveis de corpos em sua constituição; o humor das cabeças, antigas ou recentes, sobrevém aos esgares. Não plasmadas, pois difusas em velaturas ágeis, as aparições têm a indefinição, que, nos trabalhos subsequentes, opera em todos os sentidos. A meio-caminho da figura (figura = figura-imagem; imago, imitago = imagem, imitação, como semelhança, assim, escopia) e da não-figura, a aparição não se recorta sobre um fundo, ausente. Quanto ao Nº 1, seu formato irregular, vagamente estelar, surge como destruição de suporte retangular existente; o recorte explicita a agressividade, pela qual o suporte torna genérico. Barra-se a passividade inscritível, tornando-se o suporte elemento com outros aglutinável; por isso, trata-se, o mais das vezes, de achado que não sofre elaboração ulterior, não se discriminando escopicamente. Hélio Cabral pós-enuncia a destruição do retângulo: “saída da jaula”. Forçada a grade, soltam-se as pulsões, que a vão destruir como jaula escópica em todos os sentidos. Entre os Nºs 3 e 7, a grade está arrombada, o que é atestado pela divergência, impressionante, dos trabalhos. A soltura só se entende pulsio-nalmente, pois nenhum processo se verifica entre os Nº 3 e o Nº 7.
Fora das grades, o trabalho não promove o caos: a firmação de que Hélio Cabral produz “qualquer coisa” ou “nada” manifesta e negação do trabalho. No “nada”, a grade insurge-se contra o que a derruba, renegando a libido viscosa o que, dissolvendo-a, desata-a. Determina-se, aqui, o conceito de pulsão: as aglutinações, do Nº 3 ao Nº 7, constituem-se como objeto de pulsão, enquanto significam, “mitologia”, a ela mesma como campo heurístico. Significar a pulsão de morte nas suas manifestações é, no que concerne ao trabalho de Hélio Cabral, hipótese de trabalho. A libido viscosa opera ligação (Bindung) rígida, cuja sensatez pode culminar na redundância e, na pintura, na reposição continuada da grade. Investindo a pintura, tal libido não opera divergências, saltos, intermitências, pois liga tudo e reinveste a ligação. Quando, porém, há desligamento (Entbindung), a sensatez é calada pelo “demoníaco”, por aquilo que, na pulsão, é desobjetalização, desinvestimento, repetição compulsiva. A metapsicologia metaforiza heuristicamente campo de vertentes, aqui, duas, pulsão de vida, pulsão de morte. No dualismo da libido, a pulsão de vida aproxima-se ao eu e rebate-se na grade, operando ligações e investindo objetos, enquanto a de morte desliga objetos e os desinveste. Manifestando-se aquela como crescimento, progresso, síntese, esta é destrutividade, antes, auto, depois, hetero, banalmente, agressividade, na qual o objeto é desinvestido. A pulsão de morte é a hipótese do nada da sensatez, assim, coisa diversa.
A agressividade, como destruição do outro, é a manifestação pura da pulsão de morte. Neste sentido, as pinturas e aglutinações são manifestações destrutivas, em que a sedução é desinvestida e Hélio Cabral, desligado de Cabral. A destrutividade está exposta em lacerações de vassoura (Nº 4) e extirpações por fogo (Nº 7). Da aglutinação negativa, os trabalhos não são, como na vanguarda, intervenções, agressão premeditada, assim, grade. Fortuito, o rasgo de vassoura e amplificado como efeito na combustão do Nº 7: conquanto a supressão de zonas extensas de tapete não seja de todo casual, não se trata de inscrição anímica; alternando-se com pinceladas, a combustão evidencia a duplicidade da aglutinação, a adesão volátil, que o fogo refuga e cujos chamuscados e buracos se tornam ninhos de aparições: a alternância repetitiva de vazios e cheios bica a alma enquanto a assa, impasse em que a pulsão de vida, ausente o fim, é neutralizada pela morte. O Nº 6 é da pulsão de morte, não como destrutividade da aglutinação, mas como impedimento, pela repetição, de ordem ou lance sígnico; na flutuação das pinceladas e dos salpicamentos de gesso, surge algo como uma cabeça, ausente a escopia: sobreveniência, ela não anula a compulsão a repetição, que não larga o trabalho. No Nº 3, aglutinação de densidades diversas, empregaram-se te-lhas como ponte, da qual o aglutinador lançou tintas sobre a lava incandescente; os pedaços de ponte que se incrustaram na lava foram deixados, restos encobridores de escopia inexistente. Enquanto o Nº 5 oferece merda, o Nº 4 doa um bem invisível, urina. A agressividade do Nº 5 é exibicionista; não o é a do Nº 4, significada por discurso e olhar ulteriores de Hélio Cabral. Urinando sobre o verde-garrafa, o aglutinador nele promove zona de lindo verde-tília. Em cima do verde-tília circula semiose destrutiva com os traços pouco escópicos de cálice na zona urinária; margeando-o, supõem-se duas aparições, mesopotamicamente contrapostas, que, como cálice, são sobreveniências líquidas de pinturas. As duas brindam a memória de Brassens, há anos retratado por Cabral; não é de todo impossível que se as tome por rins, como o faz o aglutinador. Ambíguo, o conjunto também pode ser interpretado ora como manifestação de hipocondria do aglutinador, ora como seu trabalho de luto. As duas interpretações interceptam-se: insistência do enunciador Hélio Cabral na morte de Brassens por doença renal.
A destrutividade dos trabalhos não funda, contudo, o império vazio da desmescla (Entmischung) das pulsões, predominante a morte; prevalece a mescla (Mischung), com a pulsão de vida ligando e investindo, como também subordinando o desligamento, o desinvestimento e a compulsão a repetição da outra. A energia livre da libido não significa, pois, desinvestimento, anobjetalidade ou repetição compulsiva, uma vez que seus opostos operam na sobreveniência, traço de união de todos os trabalhos, relativamente a Cabral e Hélio Cabral. Não é necessário investir em que a aglutinação, distante embora da grade, faz-se em regime, assim, de mescla (desmescla pulsional – ausência de regime). Como exemplos, considerem-se o luto e o humor, que também implicam superação e descarga, respectivamente. Quanto à repetição compulsiva, embora não haja progressos, não cabe propor a prevalência do princípio nirvânico sobre o princípio de constância: entre os Nºs 1 e 7 não há tendência ao zero inorgânico. Conquanto ubíqua, a pulsão de morte não se impõe à vida, nem a desmescla, a mescla. Destrutiva, a pulsão de morte barra a jaula de Cabral e dissocia o pintor do aglutinador.
A heteronímia significa a diferença de procedimento e processo, não insistindo na semelhança dos heterônimos, que significa a sobreveniência de técnica ao trabalho pulsional. São técnicos os conceitos específicos da grade: suporte, cena, sedução, gesto, etc.: a pulsão de morte desliga-os uns dos outros no processo, no qual eles se ressituam como vestígios mnêmicos: alguns conceitos são desinvestidos, cena, sedução, outros mantém-se, porém desligados. Funcionais como ligados na grade, os conceitos são desarticulados, isolando-se na aglutinação. O desligamento purifica-os, exibindo-os livres dos predicados que têm na grade. A pulsão de morte destrói na aglutinação a pintura e, nisso, explicita os elementos e conceitos. Suponha-se, então, Cabral visitando a exposição: embora reprove a inconsistência do conjunto, não nega elogia à técnica posta em evidencia. Pois a aglutinação, como investida pulsionalmente, desprende o olhar das fixações procedimentais, sendo rala a libido. Cabral se vê purificado em Hélio Cabral, pois seu olhar escorre como idêntico à aglutinação.
Os olhos escorrem, pulsão, deriva, Trieb; este conceito constitui-se como articulação de quatro subconceitos, fonte, alvo, objeto, pressão. Pressão, Drang, significa metonicamente a pulsão. Trieb, em Inglês, é drive, raiz comum, pois Trieb, treiben, Got.: dreiban; V. Ing.: drifen: V. Nor.: drifa. etc.. Do Latim, deriuo, vem deriva, de riuus, rio, riba, etc.. A duplicidade de Trieb intercepta, no fisica-lismo de referência, a teoria dos fluidos, particularmente a hidromecânica, anotando-se, aqui, algumas coincidências: “pressão”, “viscosidade”, “descarga”. Os conceitos do pulsional banham-se, bastante, nos líquidos teóricos. Pulsão, deriva: aglutinação e olhar são idênticos, ambos do investimento pulsional. Esta identidade tem acolhida difícil, considerado o efeito de grade, que captura o olhar, medusando-o: impossível, ou quase, sair da jaula escópica. Mas o olhar é idêntico à aglutinação no trabalho, no qual tudo escorre. Ambos são do contínuo e do descontínuo, da vida nas adesões, da morte nos desapegos. Por aí, o olhar flui flutuando, “flutuação do olhar”. Escorre, sem moldura e sem cores, deserto ilimitado e cinzento; nada se fecha, nem corredeiras nem remansos, imagem de paisagem; nada se agita, nem turbilhões helmholtzianos nem estrangulamentos venturianos, imagem hidromecânica. Escopias. Descontínuo, o olhar atravessa a imagem, as muitas cores, as seduções e, neutro, não produz afetos, nada sendo articulado. Flutuando, o olhar com as aglutinações se aglutina e, pardo, escorre.